1.2. A construção
Dada a natureza documental deste projecto fotográfico, parece-nos adequada uma contextualização do conceito de documental.
Referimos em particular John Tagg, Giséle Freund e Walter Benjamim, numa abordagem histórica e David Bate sobre a interferência do Autor no discurso documental.
John Tagg[1] faz a ligação entre o surgimento do documento fotográfico na segunda metade do século XIX, a aparição de novas instituições tais como a polícia, a prisão, o manicómio, o hospital, a escola e o próprio sistema fabril moderno e novas formas discursivas que utilizam o documento fotográfico em novas práticas de observação e arquivo.
Desenvolveu-se um complexo processo histórico, que quase foi apagado pela ideia de uma tradição documental contínua, que considerava a prova fotográfica como algo neutro e determinado. A contrução de uma linguagem de verdade associada ao documento seria a estratégia possível para a aceitação desta nova metodologia, de registo, análise, sistematização e controle social.
Para David Bate[2] o método industrial sistemático de criação de imagens, este processo de visualização, Ver a sociedade, tornou-se um dos motores da sociedade do século XIX.
A importância da fotografia no contexto da representação social, advém segundo Tagg da produção de significados no seio de classes socias que se rivalizam e da produção de objectos para os quais existia uma procura.
Walter Benjamim debruça-se sobre esta mesma matéria no texto A pintura e a fotografia[3], afirmando que Giséle Freund no estudo La Photographie en France au 19 siécle, relaciona a ascensão da fotografia com a ascensão da burguesia tendo como ponto de referência a história do retrato[4].
Segundo Benjamim, Freund afirma que a evolução técnica alcança com a fotografia um nível adequado ao da evolução social, tornando-se o retrato acessível a largas camadas da população burguesa, tendo sido os miniaturistas as primeiras vítimas da fotografia no seio da pintura.
Quanto à construção de discurso, David Bate defende que a fotografia documental tem sempre um ponto de vista. A mise en scène (encenação) aplicada à fotografia não implica a ausência de real, mas a produção de sentido numa composição pictorial[5], numa manifestação do desejo de realidade.
A ligação à nossa prática fotográfica é visível na construção de uma estrutura formal, com uma encenação inerente ao trabalho com os retratados, mas que pretende representar uma realidade observada, sendo a existência particular destes indivíduos enquanto seres sociais e políticos que queremos abordar.
1.3. O pictórico na fotografia
‘A imagem que é divulgada como a primeira fotografia, a pedra fundadora da história da fotografia, a origem do meio, é de facto uma pintura sobre um desenho.’ Geoffrey Batchen[6]
No seio de uma relação cujas fronteiras são controversas, a citação de Batchen,
torna evidentes as influências e permutas entre fotografia e pintura.
Havendo várias referências ao longo do nosso projecto fotográfico à pintura, tanto na construção formal dos retratos, como nas opções finais de apresentação pareceu-nos adequado reflectir, ainda que de forma sucinta, sobre a ligação entre ambas as formas de expressão.
No livro Fotografia y pintura:?dos medios diferentes?[7], Laura González Flores, descreve o que considera histórica e cronologicamente os paradigmas da representação da realidade na cultura ocidental, a Visão Objectiva e a Modernidade.
Segundo Flores a Visão Objectiva é o cânone da arte ocidental, vigente enquanto modelo de representação entre o século V a.c. e o século XVII e que se caracteriza pelo seu carácter óptico-mimético.
O paradigma da Modernidade, é analisado por Flores enquanto processo histórico e enquanto processo artístico. Iniciando-se enquanto processo histórico, por volta do século XVI com a revolução industrial e desenvolvendo-se enquanto processo artístico a partir do século XIX.
Se a câmara obscura (instrumento desenvolvido ao longo de vários séculos no que denomina a linha Aristóteles-Al Hazen- câmara obscura-fotografia) foi, para Flores, essencial na definição e consolidação da Visão Objectiva, por tornar possível uma representação mimética da realidade.
Para a sustentação da Modernidade, foi fundamental o Juízo estético, a Estética e o estabelecimento da Crítica. E para tal contribuíram, ainda que espaçados no tempo, a filosofia de Kant (1724- 1804), a dialética de Hegel (1770- 1831) e no século XX as teorias do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg (1909 -1994).
Esta investigadora mexicana, afirma que é na convergência da Visão Objectiva e da Modernidade, que surge por volta de 1839 a fotografia.
A fotografia liberta a Pintura do seu papel de provedora de imagens objectivas e miméticas, permitindo a procura do que Clement Greenberg[8] definiu como a essência ontológica da Pintura, o plano, o quadro.
Se a Visão Objectiva encontra refúgio na fotografia, por permitir por natureza e defeito, uma perfeita representação análogo-mimética da realidade, a necessidade de automatismo e reprodutiblidade relacionam a fotografia com a Modernidade, afirma Flores.
Fig.1
David Bate[9] define no contexto da história da fotografia de arte, sob o paradigma da Modernidade, cinco momentos teórico-práticos.
De 1870 a 1910 o Pictorialismo, de 1920 a 1930 o modernismo-formalismo, de 1945 a 1960 o novo realismo-humanismo fotográfico, de 1960 a 1970 o minimalismo e o conceptualismo e de 1980 a 1990 o pós-modernismo ou neo-conceptualismo.
Analisaremos o pictorialismo fotográfico e a sua aproximação à pintura, procurando traçar um enquadramento histórico e uma ligação à contemporaneidade.
O lançamento em 1888 da Kodak Brownie, contribuiu para a proliferação da produção fotográfica amadora, sendo o vernáculo a expressão fotográfica dessa produção (informal, quotidiana, diarística, democrática), que estará na génese do movimento pictorialista.
Autores essenciais no pictorialismo parecem-nos ser Henry Peach Robinson (1830–1901), Peter Henry Emerson (1856–1936) e Alfred Stieglitz (1864-1946).
Robinson publica em 1869 o livro O efeito pictórico na fotografia, derivando dele a nomenclatura que definirá o movimento fotográfico.
Na procura de separação entre técnica e arte da fotografia, propôs a escolha de temas e mecanismos de composição, desenvolvendo a ideia de compósito fotográfico, mais próximo da pintura dada a semelhança dos seus métodos de produção.
Fig.2
Por seu turno, Emerson publica em 1880 o livro Naturalistic Photography, no qual explicita a sua prática fotográfica, que embora detractora dos compósitos de Robinson, procurava criar efeitos atmosféricos na representação fotográfica da natureza, através do soft focus e de diferentes tratamentos tonais.
A câmara fotográfica torna-se uma ferramenta na criação de afirmações artísticas. O ênfase na beleza do tema, na tonalidade e composição caracteriza o trabalho dos pictorialistas[10], mais do que o carácter documental do representado.
Fig.3
Alfred Stieglitz por sua vez, acreditava que a fotografia seria aceite enquanto forma de expressão artística se fosse exibida e publicada lado-a-lado com a pintura e a escultura.
O pictorialismo fotográfico foi o primeiro movimento a realizar a formulação de uma teoria sobre a artisticidade deste meio, permitindo um afastamento da sua mecanicidade e do mito da representação mimética, abrindo espaço para a aceitação da fotografia enquanto representação artística, conclui Laura Flores[11].
O estudo do pictorialismo fotográfico é pertinente na contemporaneidade, por ser constante a procura de uma essência fotográfica, que se define entre uma natureza mecanicista e artística. Outra ligação possível, está entre a génese do movimento pictorialista do final do século XIX (enquanto resposta ao advento do vernáculo e da fotografia amadora) e o distanciamento da fotografia artística do início do século XXI, face ao formato digital[12].
Ao reflectirmos sobre a fotografia contemporânea, tanto ao nível da História como da Teoria Crítica, observamos uma dicotomia entre a corrente formalista que se estende desde final dos anos 20 do século XX, herdeira de Clement Greenberg e John Szarkowsky e a corrente pós-modernista, que surge nos anos 70 do século XX.
A oposição entre estas duas visões é explicitada nas duas citações que transcrevemos.
‘ podes pensar no meio de forma puramente tecnológica: tirar uma fotografia é efectuar um conjunto de opções e o conteúdo do trabalho torna-se a tua escolha dessas opções e a forma como as organizaste(…) atitude que advém do Modernismo Greenbergiano (…) a fotografia foi inventada para nos dar uma visão ilusória de alguns aspectos do mundo em frente à câmara, que nos leva a considerações sobre representação e narrativa, o que a mim me interessa.’
Victor Burgin[13]
‘ o significado e valor de qualquer imagem é inteiramente determinado pelo seu contexto, pelas operações da cultura que a rodeia(…)a fotografia pertence a todas as instituições e disciplinas menos a si própria… e se a fotografia não tem identidade singular ou uma história unificadora, a fotografia não pode ser mais do que uma ficção enganadora(…)este argumento foi divulgado no final dos anos 70 e 80 enquanto contradiscurso pós-modernista à visão formalista, que na altura como agora domina a forma como a fotografia é discutida nos museus e na história da fotografia(…)Na perspectiva formalista, a fotografia tem uma identidade singular e inerente, a mesma que o pós-modernismo nega. ‘
Geoffrey Batchen[14]
Enquanto Geoffrey Batchen, professor, historiador e crítico, tece uma análise teórica, sem uma clara tomada de posição, Victor Burgin, fotógrafo e teórico, tem uma abordagem prática e técnica à questão, assumindo uma posição pós-modernista[15].
Alguns téoricos fotografia, afirmam o surgimento de um novo paradigma no final dos anos 90 do século XX.
David Bate[16] enuncia o filósofo Jean-François Lyotard, afirmando que o realismo pictórico regressa à arte através da fotografia e Michael Fried[17], desenvolve a ideia do Near Documentary.
Para Fried, o Near Documentary, documental próximo ou quase documental, embora parta da observação da realidade, desenvolve-se por um processo de encenação e não por um processo de mimesis.
Outra das expressões deste novo paradigma, é segundo Fried, o aumento exponencial das impressões fotográficas expositivas de fotógrafos como Jeff Wall e Thomas Ruff. Esse aumento na escala, cria um distanciamento entre o espectador e o referente fotográfico, colocando o objecto fotográfico num plano artístico
David Bate por sua vez, afirma que os argumentos de Fried significam o regresso a uma crítica modernista, representando um novo pictorialismo, confiante na sua capacidade de apreender o realismo pictórico e identificando a aspiração da maioria dos fotógrafos a ter como território preferencial das suas imagens, a arte.
O fotógrafo português António Júlio Duarte, traz para a discussão da escala das imagens em contexto expositivo, um novo contraponto ao afirmar que:
‘fotografias grandes vendem-se por um preço maior do que as pequenas(…)as pessoas gostam porque se parecem mais com pinturas, esquecendo que muitas boas pinturas são em pequeno formato(…)As pessoas que têm dinheiro para comprar fotografia ou pintura têm casas com paredes grandes.(…)’ António Júlio Duarte[18]
Analisar as visões formalista e pós-modernista, permitiu-nos posicionar o trabalho que efectuámos.
Se por um lado identificamos a nossa utilização de estruturais formais específicas da Fotografia (a carte-de-visite, a fotografia Victoriana e os retratos de Nadar) com a corrente formalista, por outro lado a abordagem pós-modernista que relaciona a prática fotográfica com outros campos do conhecimento, encontra eco no nosso trabalho, na procura de uma representação social de um momento contemporâneo da cidade do Porto.
Finalizada a fundamentação teórica do nosso projecto, iremos abordar as questões da metodologia, ligadas com à expressão prática.
[1] TAGG, John- El peso de la representation, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 84-252-1999-X
[2] BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.13
[3] Giséle Freund citada em Walter Benjamim- A modernidade, p.307/308, Assírio & Alvim, Lisboa 2006. ISBN 972-37-1164-8
[4] Partindo da técnica da miniatura de marfim, a autora mostra os diversos processos que cerca de sessenta anos antes da invenção da fotografia, apontavam para a acelaração, embaratecimento e massificação da produção de retratos.
[5] BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.61
[6] BATCHEN, Geoffrey- Burning with desire- The conception of photography, Cambridge: Mitt Press, 1997. ISBN 978-0-262-52259-5, p.127
[7] FLORES, Laura González- Fotografia y pintura:?dos medios diferentes?, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 84-252-1998-1
[8] BATCHEN, Geoffrey- Burning with desire- The conception of photography, Cambridge: Mitt Press, 1997. ISBN 978-0-262-52259-5, p.12: ‘Greenberg procurou sintetizar a história do modernismo, movimento crítico e estético dentro da Modernidade, a uma procura contínua da essência irredutível de cada forma de arte.’
[9] BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.134
[10] O grupo pictorialista inglês Linked Ring é criado em 1892 por Henry Peach Robinson, Oscar Rejlander (c. 1813-1875) e Robert Demachy (1859-1936). WHELAN, Richard- Stieglitz on Photography, His selected essays and notes, New York: Aperture, 2000
[11] FLORES, Laura González– Fotografia y pintura:?dos medios diferentes?, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 84-252-1998-1
[12] Esta afirmação tem implicações que infelizmente não cabem no âmbito deste trabalho, mas que temos esperança de desenvolver futuramente noutros contextos.
[13] Victor Burgin citado em BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.141
[14] BATCHEN, Geoffrey– Burning with desire- The conception of photography, Cambridge: Mitt Press, 1997. ISBN 978-0-262-52259-5
[15] Gilles Lipovetsky afirma já não estarmos numa sociedade pós-moderna, mas numa hipermoderna. Tendo sido radicalizados, os princípios da modernidade (a valorização do indivíduo e da democracia, a valorização do Mercado e a valorização da tecnociência).
[16] David Bate refere LYOTARD, Jean-François- A condição pós-moderna, Lisboa: Gradiva, 1989
[17] FRIED, Michael- Why photography matters as art as never before, New Haven-London, Yale University Press, 2008, ISBN 978-0-300-13684-5
[18] António Júlio Duarte em entrevista, Junho 2010.