1.2.   A construção

Dada a natureza documental deste projecto fotográfico, parece-nos adequada uma contextualização do conceito de documental.

Referimos em particular John Tagg, Giséle Freund e Walter Benjamim, numa abordagem histórica e David Bate sobre a interferência do Autor no discurso documental.

John Tagg[1] faz a ligação entre o surgimento do documento fotográfico na segunda metade do século XIX, a aparição de novas instituições tais como a polícia, a prisão, o manicómio, o hospital, a escola e o próprio sistema fabril moderno e novas formas discursivas que utilizam o documento fotográfico em novas práticas de observação e arquivo.

Desenvolveu-se um complexo processo histórico, que quase foi apagado pela ideia de uma tradição documental contínua, que considerava a prova fotográfica como algo neutro e determinado. A contrução de uma linguagem de verdade associada ao documento seria a estratégia possível para a aceitação desta nova metodologia, de registo, análise, sistematização e controle social.

Para David Bate[2] o método industrial sistemático de criação de imagens, este processo de visualização, Ver a sociedade, tornou-se um dos motores da sociedade do século XIX.

A importância da fotografia no contexto da  representação social, advém segundo Tagg da produção de significados no seio de classes socias que se rivalizam e da produção de objectos para os quais existia uma procura.

Walter Benjamim debruça-se sobre esta mesma matéria no texto A pintura e a fotografia[3], afirmando que Giséle Freund no estudo La Photographie en France au 19 siécle, relaciona a ascensão da fotografia com a ascensão da burguesia tendo como ponto de referência a história do retrato[4].

Segundo Benjamim, Freund afirma que a evolução técnica alcança com a fotografia um nível adequado ao da evolução social, tornando-se o retrato acessível a largas camadas da população burguesa, tendo sido os miniaturistas as primeiras vítimas da fotografia no seio da pintura.

Quanto à construção de discurso, David Bate defende que a fotografia documental tem sempre um ponto de vista. A mise en scène (encenação) aplicada à fotografia não implica a ausência de real, mas a produção de sentido numa composição pictorial[5], numa manifestação do desejo de realidade.

A ligação à nossa prática fotográfica é visível na construção de uma estrutura formal, com uma encenação inerente ao trabalho com os retratados, mas que pretende representar uma realidade observada, sendo a existência particular destes indivíduos enquanto seres sociais e políticos que queremos abordar.

1.3. O pictórico na fotografia

‘A imagem que é divulgada como a primeira fotografia, a pedra fundadora da história da fotografia, a origem do meio, é de facto uma pintura sobre um desenho.’ Geoffrey Batchen[6]

No seio de uma relação cujas fronteiras são controversas, a citação de Batchen,

torna evidentes as influências e permutas entre fotografia e pintura.

Havendo várias referências ao longo do nosso projecto fotográfico à pintura, tanto na construção formal dos retratos, como nas opções finais de apresentação pareceu-nos adequado reflectir, ainda que de forma sucinta, sobre a ligação entre ambas as formas de expressão.

No livro Fotografia y pintura:?dos medios diferentes?[7], Laura González Flores, descreve o que considera histórica e cronologicamente os paradigmas da representação da realidade na cultura ocidental, a Visão Objectiva e a Modernidade.

Segundo Flores a Visão Objectiva é o cânone da arte ocidental, vigente enquanto modelo de representação entre o século V a.c. e o século XVII e que se caracteriza pelo seu carácter óptico-mimético.

O paradigma da Modernidade, é analisado por Flores enquanto processo histórico e enquanto processo artístico. Iniciando-se enquanto processo histórico, por volta do século XVI com a revolução industrial e desenvolvendo-se enquanto processo artístico a partir do século XIX.

Se a câmara obscura (instrumento desenvolvido ao longo de vários séculos no que denomina a linha Aristóteles-Al Hazen- câmara obscura-fotografia) foi, para Flores, essencial na definição e consolidação da Visão Objectiva, por tornar possível uma representação mimética da realidade.

Para a sustentação da Modernidade, foi fundamental o Juízo estético, a Estética e o estabelecimento da Crítica. E para tal contribuíram, ainda que espaçados no tempo,  a filosofia de Kant (1724- 1804), a dialética de Hegel (1770- 1831) e no século XX as teorias do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg (1909 -1994).

Esta investigadora mexicana, afirma que é na convergência da Visão Objectiva e da Modernidade, que surge por volta de 1839 a fotografia.

A fotografia liberta a Pintura do seu papel de provedora de imagens objectivas e miméticas, permitindo a procura do que Clement Greenberg[8] definiu como a essência ontológica da Pintura, o plano, o quadro.

Se a Visão Objectiva encontra refúgio na fotografia, por permitir por natureza e defeito, uma perfeita representação análogo-mimética da realidade, a necessidade de automatismo e reprodutiblidade relacionam a fotografia com a Modernidade, afirma Flores.

Fig.1

David Bate[9] define no contexto da história da fotografia de arte, sob o paradigma da Modernidade, cinco momentos teórico-práticos.

De 1870 a 1910 o Pictorialismo, de 1920 a 1930 o modernismo-formalismo, de 1945 a 1960 o novo realismo-humanismo fotográfico, de 1960 a 1970 o minimalismo e o conceptualismo  e de 1980 a 1990 o pós-modernismo ou neo-conceptualismo.

Analisaremos o pictorialismo fotográfico e a sua aproximação à pintura, procurando traçar um enquadramento histórico e uma ligação à contemporaneidade.

O lançamento em 1888 da Kodak Brownie, contribuiu para a proliferação da produção fotográfica amadora, sendo o vernáculo a expressão fotográfica dessa produção (informal, quotidiana, diarística, democrática), que estará na génese do movimento pictorialista.

Autores essenciais no pictorialismo parecem-nos ser Henry Peach Robinson (1830–1901), Peter Henry Emerson (1856–1936) e Alfred Stieglitz (1864-1946).

Robinson publica em 1869 o livro O efeito pictórico na fotografia, derivando dele a nomenclatura que definirá o movimento fotográfico.

Na procura de separação entre técnica e arte da fotografia, propôs a escolha de temas e mecanismos de composição, desenvolvendo a ideia de compósito fotográfico, mais próximo da pintura dada a semelhança dos seus métodos de produção.

Fig.2

Por seu turno, Emerson publica em 1880 o livro Naturalistic Photography, no qual explicita a sua prática fotográfica, que embora detractora dos compósitos de Robinson, procurava criar efeitos  atmosféricos na representação fotográfica da natureza, através do soft focus e de diferentes tratamentos tonais.

A câmara fotográfica torna-se uma ferramenta na criação de afirmações artísticas. O ênfase na beleza do tema, na tonalidade e  composição caracteriza o trabalho dos pictorialistas[10], mais do que o carácter documental do representado.

Fig.3

Alfred Stieglitz por sua vez, acreditava que a fotografia seria aceite enquanto forma de expressão artística se fosse exibida e publicada lado-a-lado com a pintura e a escultura.

O pictorialismo fotográfico foi o primeiro movimento a realizar a formulação de uma teoria sobre a artisticidade deste meio, permitindo um afastamento da sua mecanicidade e do mito da representação mimética, abrindo espaço para a aceitação da fotografia enquanto representação artística, conclui Laura Flores[11].

O estudo do pictorialismo fotográfico é pertinente na contemporaneidade, por ser constante a procura de uma essência fotográfica, que se define entre uma natureza mecanicista e artística. Outra ligação possível, está entre a génese do movimento pictorialista do final do século XIX (enquanto resposta ao advento do vernáculo e da fotografia amadora) e o distanciamento da fotografia artística do início do século XXI, face ao formato digital[12].

Ao reflectirmos sobre a fotografia contemporânea, tanto ao nível da História como da Teoria Crítica, observamos uma dicotomia entre a corrente formalista que se estende desde final dos anos 20 do século XX, herdeira de Clement Greenberg e John Szarkowsky e a corrente pós-modernista, que surge nos anos 70 do século XX.

A oposição entre estas duas visões é explicitada nas duas citações que transcrevemos.

‘ podes pensar no meio de forma puramente tecnológica: tirar uma fotografia é efectuar um conjunto de opções e o conteúdo do trabalho torna-se a tua escolha dessas opções e a forma como as organizaste(…) atitude que advém do Modernismo Greenbergiano (…) a fotografia foi inventada para nos dar uma visão ilusória de alguns aspectos do mundo em frente à câmara, que nos leva a considerações sobre representação e narrativa, o que a mim me interessa.’

Victor Burgin[13]

‘ o significado e valor de qualquer imagem é inteiramente determinado pelo seu contexto, pelas operações da cultura que a rodeia(…)a fotografia pertence a todas as instituições e disciplinas menos a si própria… e se a fotografia não tem identidade singular ou uma história unificadora, a fotografia não pode ser mais do que uma ficção enganadora(…)este argumento foi divulgado no final dos anos 70 e 80 enquanto contradiscurso pós-modernista à visão formalista, que na altura como agora domina a forma como a fotografia é discutida nos museus e na história da fotografia(…)Na perspectiva formalista, a fotografia tem uma identidade singular e inerente, a mesma que o pós-modernismo nega. ‘

Geoffrey Batchen[14]

Enquanto Geoffrey Batchen, professor, historiador e crítico, tece uma análise teórica, sem uma clara tomada de posição, Victor Burgin, fotógrafo e teórico, tem uma abordagem prática e técnica à questão, assumindo uma posição pós-modernista[15].

Alguns téoricos fotografia, afirmam o surgimento de um novo paradigma no final dos anos 90 do século XX.

David Bate[16] enuncia o filósofo Jean-François Lyotard, afirmando que o realismo pictórico regressa à arte através da fotografia e Michael Fried[17], desenvolve a ideia do Near Documentary.

Para Fried, o Near Documentary, documental próximo ou quase documental, embora parta da observação da realidade, desenvolve-se por um processo de encenação e não por um processo de mimesis.

Outra das expressões deste novo paradigma, é segundo Fried, o aumento exponencial das impressões fotográficas expositivas de fotógrafos como Jeff Wall e Thomas Ruff. Esse aumento na escala, cria um distanciamento entre o espectador e o referente fotográfico, colocando o objecto fotográfico num plano artístico

David Bate por sua vez, afirma que os argumentos de Fried significam o regresso a uma crítica modernista, representando um novo pictorialismo, confiante na sua capacidade de apreender o realismo pictórico e identificando a aspiração da maioria dos fotógrafos a ter como território preferencial das suas imagens, a arte.

O fotógrafo português António Júlio Duarte, traz para a discussão da escala das imagens em contexto expositivo, um novo contraponto ao afirmar que:

‘fotografias grandes vendem-se por um preço maior do que as pequenas(…)as pessoas gostam porque se parecem mais com pinturas, esquecendo que muitas boas pinturas são em pequeno formato(…)As pessoas que têm dinheiro para comprar fotografia ou pintura têm casas com paredes grandes.(…)’ António Júlio Duarte[18]

Analisar as visões formalista e pós-modernista, permitiu-nos posicionar o trabalho que efectuámos.

Se por um lado identificamos a nossa utilização de estruturais formais específicas da Fotografia (a carte-de-visite, a fotografia Victoriana e os retratos de Nadar) com a corrente formalista, por outro lado a abordagem pós-modernista que relaciona a prática fotográfica com outros campos do conhecimento, encontra eco no nosso trabalho, na procura de uma representação social de um momento contemporâneo da cidade do Porto.

Finalizada a fundamentação teórica do nosso projecto, iremos abordar as questões da metodologia, ligadas com à expressão prática.


[1] TAGG, John- El peso de la representation, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 84-252-1999-X

[2] BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.13

[3] Giséle Freund citada em Walter Benjamim- A modernidade, p.307/308, Assírio & Alvim, Lisboa 2006. ISBN 972-37-1164-8

[4] Partindo da técnica da miniatura de marfim, a autora mostra os diversos processos que cerca de sessenta anos antes da invenção da fotografia, apontavam para a acelaração, embaratecimento e massificação da produção de retratos.

[5] BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.61

[6] BATCHEN, Geoffrey- Burning with desire- The conception of photography, Cambridge: Mitt Press, 1997. ISBN 978-0-262-52259-5, p.127

[7] FLORES, Laura González- Fotografia y pintura:?dos medios diferentes?, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 84-252-1998-1

[8] BATCHEN, Geoffrey- Burning with desire- The conception of photography, Cambridge: Mitt Press, 1997. ISBN 978-0-262-52259-5, p.12: ‘Greenberg procurou sintetizar a história do modernismo, movimento crítico e estético dentro da Modernidade, a uma procura contínua da essência irredutível de cada forma de arte.’

[9] BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.134

[10] O grupo pictorialista inglês Linked Ring é criado em 1892 por Henry Peach Robinson, Oscar Rejlander (c. 1813-1875) e Robert Demachy (1859-1936). WHELAN, Richard- Stieglitz on Photography, His selected essays and notes, New York: Aperture, 2000

[11] FLORES, Laura González– Fotografia y pintura:?dos medios diferentes?, Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2005. ISBN 84-252-1998-1

[12] Esta afirmação tem implicações que infelizmente não cabem no âmbito deste trabalho, mas que temos esperança de desenvolver futuramente noutros contextos.

[13] Victor Burgin citado em BATE, David- Photography the key concepts, New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3, p.141

[14] BATCHEN, Geoffrey– Burning with desire- The conception of photography, Cambridge: Mitt Press, 1997. ISBN 978-0-262-52259-5

[15] Gilles Lipovetsky afirma já não estarmos numa sociedade pós-moderna, mas numa hipermoderna. Tendo sido radicalizados, os princípios da modernidade (a valorização do indivíduo e da democracia, a valorização do Mercado e a valorização da tecnociência).

[16] David Bate refere LYOTARD, Jean-François- A condição pós-moderna, Lisboa: Gradiva, 1989

[17] FRIED, Michael- Why photography matters as art as never before, New Haven-London, Yale University Press, 2008, ISBN 978-0-300-13684-5

[18] António Júlio Duarte em entrevista, Junho 2010.

1.1. Estrutura formal do retrato na carte-de visite, em Nadar e na fotografia Vitoriana

O mundo das pequenas coisas-imagens de um presente em pausa

Imagem  de um dos fundos utilizados nos retratos

‘ O retrato é mais do que uma imagem, é… um evento semiótico de identidade social’

David Bate[1]

Fig. 1

A centralidade do retrato para David Bate prende-se com a dualidade entre um signo que descreve um indivíduo e o inscreve numa identidade social, colectiva.

O nosso projecto fotográfico aborda estes dois elementos, por um lado a caracterização de sujeitos individuais e por outro a sua inscrição num contexto colectivo, a cidade.

De forma a identificar o nosso objecto fotográfico, analisámos na carte-de-visite, nos retratos de Nadar e na fotografia Vitoriana o papel dos seguintes elementos: os fundos, a iluminação natural, o olhar, a roupa, a colocação das mãos e a pose formal, na procura de uma idealização de representação.

“O nome alude à sua semelhança de tamanho com os cartões de visita, porque se tratava de uma cópia em papel, colada sobre um cartão com cerca de 10×7,5 cm.(…) Disdéri fazia primeiro um negativo de placa húmida com uma câmara especial que tinha 4 lentes(…) Faziam-se 4 exposições em cada metade da placa, conseguindo-se 8 poses num negativo.” Beaumont Newhall[2]

Nos vários exemplos de carte-de-visite que visualizámos, observamos que quando os retratos são de corpo inteiro, os modelos encontram-se frequentemente sentados em frente de cenários pintados, com temas naturalistas.

Audrey Linkman aponta a existência de dois tipos de fundos, o neutro, introduzido por Adam Solomon (1818/1881) e o pictórico introduzido por Antoine Claudet (1797/1867).

A representação pictórica de paisagem como referência destes dispositivos fotográficos parece-nos uma análise fundamental no âmbito deste projecto.

Por um lado a explicação prende-se com o facto de na sua génese a fotografia adoptar os mesmos géneros e valores da pintura, por ser o modelo existente e poder ser aplicado de forma adequada ao meio fotográfico, tal como a autora Laura Gonzalez Flores desenvolve na sua investigação Fotografia e Pintura, dos médios diferentes?, que abordaremos no decorrer deste ensaio.

Por outro lado David Bate refere a paisagem enquanto discurso altamente diferenciável sobre a representação do espaço[3], permeável às mudanças de gosto e definindo o conceito de pitoresco[4] como o ponto de vista do pintor sobre a natureza, numa antecipação das convenções da indústria do turismo.

No contexto da carte-de-visite, os fundos pictóricos servem um propósito de contextualização social, criando também um efeito tridimensional, em retratos efectuados no interior.  A utilização de luz natural trabalhada com reflectores e cortinas, sem projecção de sombras, em estúdios com entrada de luz natural, criava uma sensação de espaço atrás da cabeça e da figura.

“ Na fotografia, o olhar da câmara é uma coisa adquirida (sendo) o operador parceiro invisível, um fora-de-campo que opera na frontalidade.”

Philippe Dubois[5]

Nestes retratos observamos uma diferente relação de olhar entre retratado e operador.

Fig.2

O olhar nas mulheres é quase sempre a três quartos, de lado e nunca erguido, em demonstração de embaraço ou modéstia, nunca com a determinação que o olhar e pose masculinas indiciam. O fotografado ora mantém o olhar dentro do enquadramento, como no caso do exemplo abaixo, ou olha para fora, para um momento exterior ao acto fotográfico.

Fig.3

A proveniência social, económica e cultural dos retratados é indicada pela roupa e acessórios. Elementos que funcionam, tal como John Szarkowski afirma no livro The photographer’s eye[6], enquanto símbolos que é necessário interpretar, porque as fotografias, por si só, explicam pouco.

As mãos, nas suas diversas colocações, são claramente visíveis e coreografadas.

Fig.4

Que paralelo estabelecer entre a carte-de-visite de Disdéri (1819–1889), os retratos de Nadar (1820-1910) e o trabalho que desenvolvemos?

Pretendemos retratar de forma unificadora um grupo de sujeitos, embora em Disdéri se procure uma identificação social dos retratados e em Nadar uma representação do indivíduo.

Utilizando uma estrutura formal idêntica em todos os retratados, pose clássica em frente a um fundo naturalista,  permite-nos tal como observamos nas obras de Nadar e de Disdéri, estabelecer uma unidade de visualização e logo de análise.

Não será no entanto esta igualdade de tratamento uma falácia, dado que o que nos interessa em cada um dos sujeitos é a sua diferença, nem que seja em última análise, em relação a nós?

Não, dado pretendermos que esta uniformização formal de todos os retratos, faça ressaltar a especificidade do indivíduo, criando a possibilidade de olhar com a mesma intencionalidade todos os retratados, tal como em Nadar.

A especificidade do retratado, a sua contextualização social, cultural e económica será visível, tal como na carte-de-visite, através do vestuário e dos acessórios, que por sua vez contribuirá para a representação de uma identidade maior, grupo social e espaço geográfico num dado momento.

Audrey Linkman no livro The Victorians- Photographic portraits[7], analisa a idealização da representação na fotografia Vitoriana e estabelece um paralelo com a prática contemporânea, afirmando que enquanto os vitorianos não sorriam de forma a parecer bem sucedidos, o sucesso na contemporaneidade é afirmado pela boa disposição. Na fotografia Vitoriana a pose e a expressão adoptadas deveriam estar em conformidade com as características físicas e sociais dos retratos, sendo recomendável um ligeiro desvio entre a cabeça e o corpo de forma a atribuir ao retrato leveza e animação, devendo os olhos seguir a direcção da cabeça, denotando o retrato delicadeza, dignidade, refinamento, modéstia, simplicidade e castidade.

No contexto do nosso projecto fotográfico e de acordo com esta análise optámos por uma idealização fotográfica característica do século XIX, tornada visível através de: 1. existência de fundos com referências paisagísticas, 2. iluminação natural e 3. formalidade no olhar e pose.


[1] David Bate – Photography the key concepts. New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3. p.67

[2] Beaumont Newhall- The history of photography from 1839 to the present.

New York: The Museum of Modern Art, 1982. Barcelona: Gustavo Gili, 1983. p.64

[3] David Bate- Photography the key concepts. New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3. p.93

[4] Pitoresco- Ideal estético que se inicia no final do século XIX, em resposta à industrialização, numa antecipação da indústria do turismo. David Bate – Photography the key concepts. New York: Berg, 2009. ISBN 978 1 84520 667 3.

[5] Philippe Dubois –O acto fotográfico. Lisboa: Editora Vega, 1992. ISBN 972-699-280-X.  p.185

[6] “ Se as fotografias não podiam ser lidas como histórias, poderiam ser lidas enquanto símbolos(…) As fotografias explicam muito pouco(…)e propõem as mais interessantes e convincentes questões.” John Szarkowski- The photographer’s eye. New York: Moma, 1966

[7]Audrey Linkman – The Victorians- Photographic portraits. London: Tauris Park Boooks, 1993. ISBN 1-85043-738-6


O mundo das pequenas coisas- imagens de um presente em pausa

Família. Junho 2010, parque da cidade. Imagem não seleccionada

“ Inscrever-se significa pois produzir real.”
José Gil

Fig.1

Sentíamos a necessidade de produzir um objecto fotográfico que, ao tratar um tema comum às ciências sociais e humanas, o despontar na cidade do Porto duma urbanidade caracterizada por uma maior convivência étnica e a coexistência de classes sociais distantes, reflectisse também a evolução do retrato no âmbito do estúdio fotográfico recorrendo ao processo da carte-de-visite.
Procurámos criar um contraponto entre a eficácia do presente e a contemplação do passado, entre o urbano e o rural, sendo o projecto desenvolvido nos contextos de um centro comercial e de um jardim.
Consideramos este projecto fotográfico um caso de estudo no contexto desta temática, dado que, para efectuarmos um retrato geral necessitaríamos de uma abordagem ainda mais alargada.
De forma a contextualizar este projecto no âmbito da fotografia contemporânea, analisámos a pose no retrato documental e o recurso a diferentes processos fotográficos, estruturas ópticas e formais.
Os autores fotográficos abordados, trabalham de forma muito eficaz alguns dos elementos que caracterizam o projecto fotográfico que nos propomos desenvolver, não se pretendendo realizar uma exaustiva compilação histórica ou estilística.
Quanto à questão da pose são relevantes os trabalhos Halloween in Harlem de Amy Stein, Embodiment de Molly Landreth e as séries fotográficas de Pieter Hugo, Nollywood e The hiena and other men.

Fig.2

O projecto Halloween in Harlem (fig.2) de Amy Stein, nascida em 1970 nos EUA, caracteriza-se pelo recurso à pose num registo documental.
Stein utiliza o médio formato quadrado, sendo possível estabelecer um paralelo com a obra de Diane Arbus, formalmente e a nível temático, por terem como matéria-prima a rua e as pessoas que nela circulam.
Amy Stein ao contrário de Arbus, utiliza a cor nas suas imagens. As referências à street art e ao consumismo gráfico, visíveis na rua, caracterizam uma sociedade particular.
Halloween in Harlem constitui uma visão documental de um momento particular, o Halloween, de um local, Harlem e de um tempo, agora.

Fig.3
O projecto Embodiment de Molly Landreth, nascida em 1978 nos EUA, retrata de forma abrangente e intimista uma vivência homossexual na América.
Sentimos a proximidade da fotógrafa com os sujeitos fotografados numa construção visual aparentemente decidida por ambas as partes.
Molly Landreth gosta de pensar no retrato como:

“Um palco para as pessoas se representarem a si próprias, aconselhando os retratados a olhar para a câmara como se estivessem a olhar directamente para o espectador da imagem.”

Tal como em Amy Stein, existe uma visão documental que nos leva a entrar na vida, casa e intimidade destas pessoas, lembrando-nos o título do trabalho de Jacob Riis (1849 – 1914) How the other half lives: Studies Among the Tenements of New York (1890).
Os retratos denotam sensibilidade na iluminação, nas cores, na pose clássica e estática, enquadrada pelo conforto das casas, aqui vistas como lares de famíla.
Em relação à pose e à formalidade dos seus retratos, Molly Landreth afirma ser:

“ Uma tentativa de provocar o respeito e a consideração no espectador, uma tentativa de reconhecer e visualizar uma História nacional partilhada assim como desejos e sonhos básicos comuns.”

O título do trabalho Um retrato de uma vida homossexual na América, a par da frontalidade dos olhares face à câmara e ao destinatário final das imagens, atribuem ao retrato desta comunidade, toda uma ordem de valores ligados a um determinado estatuto social e moral, que a fotografia foi ao longo da sua história atribuindo a outros grupos sociais.
No contexto da fotografia vitoriana, a pose a adoptar no acto fotográfico servia para atribuir aos retratados uma série de valores sociais e morais, entre eles modéstia, dignidade e refinamento de trato, sendo de referir também o papel da fotografia em meados do século XIX, na representação de uma burguesia em ascensão.

Fig.4

As séries Nollywood e The hiena and other men foram efectuadas na Nigéria entre 2005 e 2008, por Pieter Hugo, nascido em 1976 em Cape Town.
Levantam-nos algumas questões sobre a relação ética no acto fotográfico, em particular sobre a forma como fotógrafo e sujeito se relacionam na produção fotográfica.
Pieter Hugo em Nollywood, fotografa um grupo de actores e figurantes, obtendo o que consideramos um diálogo perturbador entre alguns dos ícones e símbolos da indústria cinematográfica global e a periferia de uma cidade nigeriana, entre o urbano e o rural.
Existe uma unidade formal nos retratos de Pieter Hugo, o formato quadrado, a cor, a colocação central do sujeito no cenário e a pose frontal.
Embora a presença de um autor que organiza o discurso fotográfico seja característico da narrativa documental (questão que abordaremos no decorrer deste ensaio), no caso de Nollywood pensamos enfatizar a problemática das relações entre a sociedade ocidental dominante e as sociedades anteriormente colonizadas.
No projecto The hiena and other men, Pieter Hugo acompanha um grupo de saltimbancos, composto por homens ainda jovens e crianças, que utilizam animais (macacos, jibóias e hienas) para números de entretenimento pelas cidades da Nigéria.
Os retratados aparecem descontextualizados do seu grupo ou quotidiano.
A pose mantém-se como elemento fotográfico unificador do projecto.
Embora os códigos da fotografia de moda surjam na ligação entre as roupas, a pele dos animais e o ambiente circundante ao retrato, o carácter documental desta representação é mais forte.
Referimos de seguida a utilização na fotografia contemporânea de processos fotográficos alternativos como o colódio húmido, de estruturas ópticas como a câmara obscura ou de estruturas formais como a carte-de-visite .
Interessa-nos em David Prifti, fotógrafo canadiano o seu trabalho de retrato com o processo de colódio húmido, processo introduzido na prática fotográfica, em 1851, por Frederic Scott Archer.

Fig.5

A especificidade destes retratos encontra-se na oposição entre a intemporalidade das imagens, fruto do elevado tempo de exposição e a contemporaneidade dos sujeitos, patente nos rostos, postura e na utilização de piercings, alargadores e implantes subcutâneos.
Abelardo Morell, nascido em Cuba em 1948, trabalha a câmara obscura, ferramenta óptica basilar para o desenvolvimento da perspectiva e da representação, tal como a concebemos hoje em dia.

Fig.6

Abelardo constrói uma visão do mundo contemporâneo, ocidental.
Devolve-nos, sobre a perspectiva da câmara obscura, imagens turísticas de algumas cidades ocidentais, criando o que poderíamos considerar, postais pitorescos contemporâneos de uma sociedade ocidental.
Abordaremos os trabalhos Ao Natural de António Júlio Duarte e Gone Astray Portraits de Clare Strand, pela sua ligação à carte-de-visite.

Fig.7

“Ao Natural é um questionário sobre a forma como nos relacionamos com a Natureza, como a vivemos enquanto espaço social e também como a reconstruímos, a tornamos em objecto de consumo, havendo nesta série um percurso mais ou menos irónico pelos temas comuns à fotografia e à pintura: o retrato, a natureza-morta, a paisagem.”

Fig.8

Clare Strand utiliza a estrutura dos fundos pictóricos do final do século XIX, considerando que os seus retratos expressam uma caracterização geral. A fotógrafa utiliza actores e cada personagem é construída de acordo com a concepção de Clare Strand sobre tipos
de pessoas existentes em todas as cidades.
São influência no nosso projecto a pose formal nos retratos de Amy Stein, Molly Landreth e Pieter Hugo, sendo importante atentar na forma como o autor interfere na representação do sujeito, tal como analisámos em Pieter Hugo. A criação de uma plasticidade pelo recurso a técnicas ou processos fotográficos, tal como visualizámos em David Prifti, representam um caminho visualmente apelativo.
As questões sobre a representação da paisagem e as ligações entre a pintura e a fotografia que tanto Abelardo Morell como António Júlio Duarte analisam, encontram-se presentes neste projecto fotográfico, assim como a estrutura da carte-de-visite que Duarte e Clare Strand exploram.
Na construção deste ensaio iremos raciocinar com base em duas grandes linhas de força, que correspondem aos seus dois capítulos.
No capítulo 1, intitulado fundamentação teórica do projecto, iremos explicar a base formal do trabalho fotográfico por nós desenvolvido.
Ao longo desse capítulo abordaremos as seguintes questões: 1. a representação no retrato, na carte-de-visite, em Nadar e na fotografia vitoriana; 2. a construção do documental e o ponto de vista autoral neste discurso e 3. a presença do pictórico na fotografia, abordando a génese da fotografia no contexto estilístico da pintura e alguns momentos da crítica e história da fotografia.
No capítulo 2, denominado metodologia, efectuaremos uma contextualização social e espacial da prática fotográfica desenvolvida, assim como uma explicitação das opções técnicas até ao objecto final expositivo, com uma clara ligação aos conceitos abordados no capítulo 1.

Resumo

Quem somos nós hoje e que rosto temos? Uma nova urbanidade desponta na cidade, caracterizada por uma maior convivência étnica e a coexistência de classes sociais distantes, numa cidade com laivos de ruralidade, tendo a periferia um peso essencial na construção da identidade, social e cultural.

Este trabalho visa analisar como pode a fotografia tratar os mesmos temas que as ciências sociais e humanas, criando um corpo de trabalho que acompanha a evolução da história do estúdio fotográfico recorrendo ao processo da carte-de-visite. Tendo estas questões como linhas orientadoras, realizámos um projecto de retrato, que aborda as questões da diversidade étnica e social no seio da cidade do Porto, recorrendo a uma estrutura formal que advém da carte-de-visite.

Palavras-chave: Retrato, representação, carte-de-visite, sociedade, documental pictórico

O mundo das pequenas coisas-imagens de um presente em pausa. 2010

fundo 1#

Abstract

Who are we today and what is our face?

A new urbanity raises in the city, caracterized by a wider etnic comunity life and the coexistence of different social groupes. In a city with traces of rurality, in wich perifery as an essential role on the construction of social and cultural identity.

We were interested in the analyses of how can photography address the same issues as human and social sciences, at the same time we were focused on building a body of work that reflects photography history at the same time it is enrolled in the questions of our time.

Having these questions in mind, we built a portraiture project that deals with questions of etnic and social diversity, in the city of Porto, using a formal structure derived from carte-de-visite.

Keywords: Portrait, representation, carte-de-visite, society, pictorial documentary

O mundo das pequenas coisas-imagens de um presente am pausa. 2010

making off- centro comercial Via Catarina. imagem Margarida Ribeiro

O mundo das pequenas coisas- imagens de um presente em pausa

Inauguração dia 17 Julho 2010, 15h

Sala Joshua Benoliel- Centro Português de Fotografia

Porto

Quem somos nós hoje e que rosto temos? Uma nova urbanidade desponta na cidade, caracterizada por uma maior convivência étnica e a coexistência de classes sociais distantes, numa cidade com laivos de ruralidade, tendo a periferia um peso essencial na construção da identidade, social e cultural. Este trabalho visa analisar como pode a fotografia tratar os mesmos temas que as ciências sociais e humanas, criando um corpo de trabalho que projecto que acompanha a evolução da história do estúdio fotográfico recorrendo ao processo da carte-de-visite. Tendo estas questões como linhas orientadoras, realizámos um projecto de retrato, que aborda as questões da diversidade étnica e social no seio da cidade do Porto, recorrendo a uma estrutura formal que advém da carte-de-visite.

Inserido no Mestrado em Fotografia e Cinema Documental, ESMAE/IPP

fotografia ANAPEREIRA